Encontro inevitável

- Cansado mesmo eu fiquei naquele dia do acidente. Não foi um acidente como os outros. Foi coisa feia. Era pedaço para todo o lado. Uma coisa medonha. Não sou de me impressionar. Um homem nesta lida tem que ser forte, ter estômago duro e nervos de aço. Mas por esta luz que me alumeia, não quero mentir pro senhor: foi danado. Quando fui pra casa tive que tomar umas e outras pra espantar os pensamentos ruins. E a imagem não saia da minha cabeça: eu juntado aquelas coisas mortas, decepadas, fazendo de conta que eram pedaços de cachorro, de vaca. Não que já não tivesse feito isto antes. Mas algo ali, naquele dia, me impressionou. Graças a ti, meu bom Pai, consegui dar conta. Não sei o que foi. É que quando tem criança no meio é brabo. A gente lembra dos filhos, da patroa e uma dor rasgada aperta o peito, dá umas fisgadas no coração, bem aqui. Tem que aguentar. Tem que pensar em outra coisa, imaginar que está em casa brincando com os pequenos. Mas fazer o que, né? O senhor entende. Um homem tem que trabalhar e manter a dignidade, seja onde for. Não pode envergonhar
os seus. Mas naquele dia eu chorei baixinho na cama, quando fui deitar. A imagem de uma boneca sem cabeça, jogada no asfalto, não saía da minha lembrança. Fiquei pensando naquela menina. Tão pequena e que já não existe mais. O senhor me endente, né? Não era apenas uma criança. Ali, naquele momento, morreram com ela diversas vidas. Acabou-se uma historia que nem teve tempo de começar. O senhor acredita em destino? Pois tem que ser. Não pode ter outra explicação. A pessoa vem andando, bem faceira, cheia de sonhos, e num piscar de olhos, assim de repente, vira só um amontoado de restos, pedaços que vão ser catados por um infeliz que teve a ideia fraca e não soube aproveitar as ofertas da vida. Que ficou na situação de coitado, esperando a ajuda alheia. Agora eu já sei: Deus ajuda quem cedo madruga. Só que ficou meio tarde, o senhor não acha? A minha filha de 16 está grávida. Ela e o namorado, de 18, vão ficar lá em casa. A mulher está acamada. O meu mais velho pegou quartel, ainda bem. Mas a gente se cansa. Eu devia ter ficado de olho na menina. Mas confesso que não insisti para que ela estudasse. Poderia ser doutora. Agora está fácil, o governo ajuda as pessoas até nos estudos. Mas tirar forças de onde? Aquele acidente mexeu com a minha ideia. Depois daquele dia achei de ficar com uns apertos no peito, me dá um sufoco e parece que o coração já vai saltar pela boca. Quando fico assim, não tenho paradeiro nem em pé, nem sentado. Dá só uma vontade de sair e ficar em silêncio, até passar. Depois vem o medo de que aconteça de novo. A gente fica sempre vigilante, à espera. Eu tento disfarçar, mas bate um pavor. Um pavor de deixar tudo para trás. Acho que foi isso que pensei quando vi a menininha. O senhor entende, claro. Aí resolvi vir aqui contar um pouco do que estou sentindo, buscar uma luz. Não estou me queixando. Sei que tem gente em situação bem pior. Mas a gente fica desnorteado. Não sabe a quem recorrer. E tem que trabalhar, enfrentar a vida. Tenho até pensado em pegar uns biscates e largar isso. Mas agora tem esta criança vindo aí. Sabe, quando eu tinha essa idade, era um mongolão, não tinha esses pensamentos. Também, o pai não deixava por menos e botava a gente pra trabalhar. E dizia: mente desocupada, oficina do diabo. E o senhor não acha que ele estava certo? Essa juventude de hoje está desse jeito. Não ouve mais ninguém. Mas de certo tinha que ser assim. Aí eu pensei: porque não tentar? Afinal, sei que todos recorrem ao senhor quando estão no desespero. Não é do meu feitio, o senhor sabe. E até peço desculpas. Mas é que sempre achei que o senhor devesse estar muito ocupado tentando resolver problemas maiores e que não teria tempo para umas bobagens assim que nem as minhas. Mas aí, depois de ver o meu estado, a minha mulher disse: Deus tem tempo para todo mundo, homem! Então, aqui estou eu.

Comentários

AC disse…
Passei por aqui e... descobri talento!
Vou seguir, claro.

Beijo :)
Jacaré Molhado disse…
Sem querer ser piegas, digo que os caminhos são muitos... E as oportunidades também...
O texto é lindo pela simplicidade, emotividade e densidade!
Por enquanto estou lendo e fuçando... Como já sigo, breve comento mais!
Obrigado por seus escritos e, por favor, não pare!
Chico Luz disse…
Escreve mais, chefa!
Unknown disse…
Que texto lindo. Me tocou à medida que os fatos foram sendo expostos. Foi de uma sensibilidade incrível, tanto que estou ainda imaginando a vida desse homem e o que ele presenciou.
um abraço!
Mar disse…
Magali
Não à toa, diante das tragicomédias vividas, este homem se decide procurar o próprio Deus, em busca de alento para seu cansaço, quietude para seu espanto com a fragilidade da vida humana e mesmo solução para seu desconforto como pai...
Uma criação vívida, marcante, que nos leva até o fim do texto em curiosidade, e, justamente aí, onde ela deveria acabar, somos remetidos a outra: terá esse homem meio simplório conseguido seu objetivo?! Terá sua formação, carregada de termos técnicos do cristianismo, significado que há nele esperança ou fé suficiente?!
Muita criatividade no ar! Muita curiosidade de desfecho! Excelente.
Um abraço carinhoso
Marcelo Bandeira
Catia disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Catia disse…
Que lindo Magali.. ia dormir e voltei pra ler.. q tocante, que emocionante! Acho q todos nós vezenquando têm uma conversa dessa com Ele! bjão