Causos de outrora

Quando o sol já vai desmerecendo no horizonte, de vereda me lembro dos tempos de primeira. De já hoje pensava naquela época, quando somente a lua alumiava a noite e, no escuro da varanda, cortado pelo facho do candeeiro rodeado de mariposas, o corpo descansava da lida do dia. Lá fora, os vaga-lumes começavam a piscar e o cheiro dos maricás adocicando tudo. O terreiro jazia silenciado da gritaria da gurizada. Um cusco ladrava ao longe, solitário. Como era boa aquela vida. Lá de dentro vinha o cheiro de carne fritando na panela de ferro, para mais tarde ser misturada à mandioca cozida, se desmanchando. Ambrosia ou doce de abóbora depois. Um chá de boldo em cima pra rebater a gordura e enfrentar melhor a noite de sono — se batendo pra espantar os mosquitos.

Bom era tragar a fumaça do palheiro lentamente, sentindo a ardência do fumo nos lábios. Erguer os pés livres das botas e sorver o mate devagar, deixar a cabeça livre. O silêncio chegava a doer. A noite se debruçava, se esparramando pelo universo. As estrelas começavam a se empoleirar no céu, num pisca-pisca, tisnando de prata o breu sem fim. Logo se ouvia um ‘Ó de casa’. A cachorrada se alvoraçava toda. ‘Quem vem lá?’, gritava eu daqui, me pondo em pé, ajeitando as calças e passando a mão pelo cabelo engraxado. A visita chegava. Quase sempre era um parente próximo. ‘Tem janta?’, perguntava. ‘Pode chegar, onde comem três comem quatro’. Era a senha para uma longa conversa, talvez um carteado depois. Os assuntos giravam em torno do clima, a plantação, os animais, a criançada que crescia feito capim depois da chuva. Lá dos fundos vinha um chiado de música, do radinho de pilha.

A vida era assim. Passava lentamente, sem pressa de acontecer. Mais tarde, todos reunidos em torno da mesa, a conversa rolava solta. Era um passa a carne pra cá, me alcança a mandioca pra lá, quer feijão compadre?, tem torresmo, nega?, vão carnear o porco domingo?, o padre Onofre vai vir aqui pra almoçar amanhã, vamos matar a Franzina pra fazer a canja que ele gosta ... Tudo sob a luz do lampião e a algazarra da piazada. Dali a pouco era se preparar para o amanhã, para saltar cedo da cama. Bem que podia chover esta noite, para a gente dormir sentindo o cheiro gostoso de terra molhada...

Hoje já não vemos mais o compadre, as crianças cresceram e foram estudar na cidade, vêm somente nas datas especiais, o padre Onofre envelheceu do corpo e da vida, fica resmungando pelos cantos. Tudo é tão corrido, no inverno faz calor no verão faz frio, as estrelas mal aparecem escondidas pela poluição, a natureza chora a pressa do homem. E nós apenas sentamos na varanda olhando o sol desbotar, mas sem aquele brilho de outrora...

Comentários

AC disse…
Texto maravilhoso, Magali!
Sabe uma coisa?, as lembranças só nos resguardam quando a vida foi bem respirada.

Beijo :)
Runa disse…
Pelo menos, uma coisa a vida não nos tira: a capacidade de recordar os bons momentos. Belo texto.

Obrigado pelo comentário simpático, lá no meu blog

Abraço

Runa